quarta-feira, 1 de abril de 2009

Às vezes, Caio... (republicando)


Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde.*

Estamos sentados a uma distância de mais ou menos 5 metros. Tem muita gente entre nós. Eu acho que o reconheço pela camisa. Ele adora esta camisa. Mas ele também não se importa muito com modas e estilos. Raramente compra algo pra vestir. Só quando realmente precisa. Sapatos então... usa até gastar.

Mas seria tão indelicado referir-me a seus sapatos de pano como uma imperfeição...*

Os tênis parecem que estão se desintegrando por algum corrosivo químico. Não importa. Eu gosto assim.

Não, você não sabe, você não sabe como tentei me interessar pelo desinteressantíssimo.*

Acho que, mesmo não pensando em estilo, ele consegue impor um estilo bem característico. E foi isso que me fez olhar pra ele com interesse. E é engraçada essa falta de vaidade. O cabelo não vê um pente há anos. A barba só é feita quando já tá arranhando demais o pescoço.

...sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias.*

Só tem uma coisa que ele não dispensa: o perfume. E como eu gosto daquele perfume. Só dele.

Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto...*

Não lembro de conhecer outra pessoa que use o mesmo perfume- e ele o usa há anos. E jura que não usa quando perguntam. Diz que é o amaciante da roupa ou o sabonete. Acho que pelo jeitão dele, as pessoas acabam acreditando. Ninguém diria que ele passa perfume antes de sair de casa.

E gosto das tuas histórias. E gosto da tua pessoa. Dá um certo trabalho decodificar todas as emoções contraditórias, confusas, somá-las, diminuí-las e tirar essa síntese numa palavra só, esta: gosto.*

Pois é... ele tem suas extravagâncias. Prefere vinhos italianos, adora Häagen-Dazs, lê os livros em seu idioma original (inglês, francês ou espanhol) porque diz que a tradução distorce o sentido real das palavras.

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.*

São esquisitices que o tornam único. Principalmente porque quase ninguém sabe dessas particularidades. Ele não é arrogante, nem gosta de se exibir. E eu, olhando pra ele, agora com o rosto grudado no vidro, e com a essa chuva lá fora...

...só olhando você, sem dizer nada só olhando e pensando: Meu Deus, mas como você me dói de vez em quando!*

Na verdade, ele prefere ser exatamente este cara que eu vejo discretamente levantar agora. Mais um na multidão. Mais um no meio de tanta gente. Invisível aos olhos de tantos. Totalmente destacado aos meus. Me enxerga e já abre aquele sorriso que eu amo. Só que eu estou à frente e tenho que descer antes. Espero. Ele desce. Rimos. Então ele me diz:

- Abraça a sua loucura antes que seja tarde demais.*
- Minha loucura, por acaso, seria tu?


* Caio Fernando Abreu.

In: O ovo apunhalado. Porto Alegre: Globo, 1975; Morangos Mofados. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982; Triângulo das Águas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983; Pequenas Epifanias, crônicas (1986/1995). Porto Alegre: Sulina, 1996; Caio 3D - O melhor da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails